segunda-feira, dezembro 05, 2005

Corporate Living #1

Que horas são? Cedo, o autocarro é uma coisa podre de metais e plásticos e borrachas e chia nas curvas, ao longe, comigo na praça, em frente do prédio alto e velho, os miúdos acenam-me com os dedos e dirigem-me alguns impropérios, a mim e ao meu fato e à minha mala, alguns olham-me de lado e julgo saber lâminas naqueles bolsos, outros fumam drogas e bebem, mais longe, e o que me chega desses é uma certa conversa despropositada acerca de não sermos nada e de como nossa senhora é tão mas tão bonita e boa na cama. Ajeito a gravata e entro no prédio e dentro do prédio fecho o chapéu de chuva sujo de lixo e de pó e de cuspo e de ranho e fecho a porta a tempo de me livrar de levar com um pacote de leite que presumo estar já podre, enquanto um ou dois miúdos acenam coisas nas mãos e me fazem caretas. Quase todos fazem graffitis nas paredes do prédio, como se a podridão algum dia fizesse com que tudo isto ruísse. Fechámos o acesso directo do prédio à cave porque eles se infiltraram por lá, como ratos. Digamos que são como ratos, a rondar o edifício todos os dias a todas as horas, a roer e a macular as fundações do edifício todos os dias, a todas as horas, querendo o edifício para eles, os dez andares de compartimentos e cubículos para beatas de cigarros e preservativos e alguns intestinos e restos de cérebros aqui e ali.
À entrada pico o cartão e olho para o detector de impressão ocular, um tanto obsoleto, tudo, já, e a máquina responde-me num tom mecânico e impessoal que posso subir, e que hoje posso descansar mais, não há nada de mais para fazer que não seja dobrar papéis e digitar uns textos e umas actas e umas circulares, verificar as acções e pouco mais que isso. O meu escritório é no oitavo andar, virado para a praceta onde os miúdos deitam fora os dias, olhando com raiva para nós e para os nossos fatos brancos e azuis e cremes e pretos e cinzentos e as nossas gravatas cremes e brancas e pretas e azuis e cinzentas e as nossas camisas brancas e cremes e azuis e cinzentas e pretas e os nossos sapatos pretos ou castanhos ou azuis ou cremes ou brancos ou cinzentos mas maioritariamente castanhos e pretos (pretos geralmente polidos e brilhantes). O prédio foi construído com vidros à prova de bala e há vestígios de tiros factuais maioritariamente no segundo e terceiro andares.
Apesar de tudo, o prédio é velho. Chamo o segundo elevador, de entre os dez disponíveis, e demora cerca de dois minutos a chegar, rangendo portas de aço inoxidável contra paredes de aço inoxidável forradas a uma coisa que parece lã. Das doze músicas possíveis, escolho a sétima, uma versão de uma coisa que parece vagamente Autumn Leaves, de Miles Davis e John Coltrane. A viagem demora por volta de quatro minutos. Quatro minutos dá para ouvir a música quase até ao fim. As portas apitam, invariavelmente "chegou ao seu andar. Obrigado, bom dia, até logo!", saio do elevador e atravesso o corredor, cumprimentando uns ou outros, ocasionalmente, pelo menos. Óscar 324 está na cozinha do andar, nu, com um blazer cinzento, um par de meias cinzentas e um avental plástico amarelo, de cozinha, a fritar qualquer coisa, com as nádegas sujas de farinha. Mariana 86 está sentada num banco, ao lado da mesa, nua, com um par de meias de lycra até à coxa, a fumar um cigarro. Ouço-os falarem de mim mas só de repente, e sigo ao longo do corredor. Dez escritórios, até ao meu. Ao longo do corredor, algumas faíscas inesperadas saltam dos aparelhos de segurança e do alarme de incêndios, embora nos garantam que tudo funciona na perfeição. As luzes funcionam perfeitamente, e há janelas q.b., para uma iluminação natural e reconfortante. Tomás 631 está no seu escritório, e entro para o cumprimentar. Em cima da secretária, um estojo aberto, e nas vitrinas ao longo das paredes armas diversas, rigorosamente aprumadas. A janela está aberta e ouço qualquer coisa abafada que se assemelha a gritos ténues. "Hoje está fraco. Só consegui sete, escapou-me agora um...", diz-me 631, apertando-me a mão, e colocando a caçadeira furtiva sobre a mesa. Olho pela janela e avisto quatro dos sete corpos espalhados ao longo da praça, e outro que foge, agarrado a uma perna, o mais rápido possível. Assim que 631 pega na arma novamente e ajeita o cabelo com a mão, ouço um som abafado e o corpo que fugia agarrado a uma perna fica-se por ali, ao pé de um caixote do lixo e de uma sebe. Não há ninguém para os vir buscar. Não sabemos se têm família, ou não. "É mais engraçado quando faço com as pistolas. Eles assustam-se mais, mas sabem que a precisão não é tanta. Com as caçadeiras normais, então, chego a arrancar membros a alguns, em dias mais felizes." As equipas do lixo, quando fecharmos as portas do prédio, tentarão levar os corpos que conseguirem ver, os outros acabarão por ser queimados. Só Tomás 631 chega a conseguir uma média de quinze ou dezasseis, por dia.
No meu escritório não há armas. Apenas uma secretária e um suporte fotográfico de hologramas, onde tenho digitalizações de fotografias de familiares e de locais que me reconfortam, como a luz que entra pelas janelas cuidadosamente colocadas por algum arquitecto sueco. O meu escritório é mais um gabinete que um escritório e não cheira a pinho nem a incenso nem a latex nem a exsodados vaginais nem a sémen nem a merda nem a sangue nem a sabão azul e branco, cheira apenas ao que cheirava quando vim trabalhar para aqui.
Fecho a porta antes de ouvir Óscar 324 a convidar Mariana 86 para mais uma queca na mesa da cozinha, e Tomás 631 grita, provavelmente ajeitando o cabelo, que conseguiu estoirar os miolos em cheio a uma rapariga que estava a andar de skate.

E depois de tudo isto, acendo um cigarro e ouço, agora sim, uma versão original de Take 5, por John Coltrane e Dave Brubeck. E esqueço-me dos miolos espalhados pela praça, dos preservativos na cave, dos graffitis nojentos na base do prédio, dos pacotes de leite podre, da voz do detector de retina e do ranger de portas dos elevadores.

E a máquina traz-me um café mal tirado, enfim, não deixando de ser um café...

1 comentário:

João Silveira disse...

break point - café com 4 pontinhos verdes e uma colher de plástico.

break point.