segunda-feira, outubro 31, 2005

(...)

houve um dia houve tudo.
agora, o corpo é somente corpo e carne e palavra que, invariavelmente, apodrecem, vulgares e medíocres.
como tudo, aliás, se um dia nada mais haja nas mãos que mãos segurando cigarros enquanto morrem como corpo e carne, sem palavras.
agora, apenas mãos sendo mãos e um corpo vulgar. palavras medíocres. sempre.

pouco mais que isso, disfarçado em brilhos.
a única verdade as lâminas.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Das unhas, o que resta é um buraco, um buraco num sítio
onde o que era antes era Eu
mas agora já não, só um som vagamente sanguíneo
de quem pisou a tijoleira da sala e completou alguns
aniversários. Comi as unhas e algumas castanhas assadas
sabiam exactamente ao mesmo,
a mel e a amêndoas e a chocolate;
no lugar de mim existe agora apenas um buraco, e nesse centro
os frutos da noite são como maçãs ou gatos
que caem das árvores.

quarta-feira, outubro 26, 2005


láforachoviasilêncioeraivafriadistanteumcorpopálidoestendido
láforaerafrioesilêncioetudooquefoiláforaeraotempoeraofim.
não saber amar.
não conseguir ficar.
nunca nada para sempre eternamente fugindo.
láforaerafrioesilêncioetudooquefoiláforaeraotempoeraofim.

domingo, outubro 23, 2005

utilizar o silêncio como arma de fogo
como utensílio da língua
pensar
(o silêncio)
vermelho como uma irritação na pele-
-ver o silêncio na tua boca de
inverno
assassinar-me os sentidos.

quinta-feira, outubro 20, 2005

todos estão acabados. contei os dias e extraí deles um número, o número que anunciaria o fim do tempo, não só o tempo enquanto o conhecemos, mas também o tempo das colheitas e das tardes perdidas em frente aos televisores. o número é indecifrável e indivizível, senão por si mesmo e pelo seu quadrado.
toda a gente morreu e os corpos caem ao longo da estrada, nos campos só os espantalhos se erguem ainda, permanências estranhas dos homens e das mulheres que vão desaparecendo lentamente. os corpos depois de mortos apodrecem, como é normal que aconteça.
tenho nas mãos um fio de nylon bastante comprido. sai-me dos dedos. entro nas cidades e faço o fio passar por dentro dos ossos e dos crâneos caídos pelo chão e arrasto um rebanho estranho de sombras e de misérias. cada animal que puxo tem em si o local onde os fogos começam e onde as mãos dos amantes se entrelaçam num revolver de sexos. cada olho vazio como um buraco sem fundo das caveiras vagas que batem nas pedras sabe a mar e a estrelas e seguimos o nosso caminho, eu, um pastor de sombras e de misérias e o meu rebanho de animais estranhos, úmeros e omoplatas e crâneos e rádios e fémures e falanges e afins
esqueletos que me saem dos dedos presos a mim por um fio de nylon, como papagaios térreos que perderam a capacaidade do céu, ou então
é a hipótese mais plausível
simplesmente não há vento, para que voem. percorremos
os campos e as serras e as estradas e gritamos imenso, gritamos ao deus os nomes de tudo o que encontrámos pelo caminho e o deus aponta-me o dedo e garante-me que hei-de provar as urzes das bermas e os cardos das giestas, e cada animal de sombra se assusta com a voz do deus, fechando assim os lábios, como se fossem páginas de um livro, de uma
bíblia.

terça-feira, outubro 18, 2005

todos os milhares de pessoas que nos tocam
em cada esquina
são suspeitas do crime da invisibilidade

todas elas se algemam em comunhão
e se movem como

um corpo total, só

enquanto nós, sós de facto
seguramos nos ombros
todos os seus pesos

onde as mãos crescem de dentro
das frases

não o inverso

segunda-feira, outubro 17, 2005

sigo sempre
no éter dos dias
adormeço com violência
no meu corpo

na vacuidade cirúrgica da chuva
e no próprio uso da palavra

vacuidade

que me confunde.

dou-me conta das palavras que uso para não me reflectir demasiado
ou para desviar a atenção da minha voz
porque todo o reflexo é repetição

e mesmo estes axiomas polidos nada mais são do que
ecos
no éter dos dias.

aliás,
todo o reflexo é repetição
seria marcante não fosse o facto de ser algo que naturalmente diria
e, afinal, não fujo aos reflexos mesmo pensando que o faço.

nem sequer Poesia, mesmo pensando que o faço.


seria mais fácil fazer engolir estes versos agudos e ambíguos e orgulhosamente brilhantes a certos escolásticos que vibram e batem palminhas à

vacuidade

e a tudo o que se aproxime de algo como:

como o reflexo é repetição

sei que me dariam palmadinhas nas costas e beijinhos na testa e perguntar-me-iam "para quando um livro", já que tão bem sei usar o léxico, referências filosóficas platónicasocráticasaristotélicas, conceitos-base-conceitos-tecto, "toda a Literatura é paraliteratura, metaliteratura, etc etc...", referir-se-iam a mim como "um jovem promissor" e surgiriam sorrisos discretos.
no fundo, seríamos todos felizes e rapidamente teria a primeira edição do meu livro de textos, nunca poemas pois seria humilde, nos escaparates e até, quem sabe, junto a um CD de uma banda underground mas "extremamente gabada e reconhecida no estrangeiro".
seria a cara de um movimento urbano intelectualizado, jovens no Metro a lerem o meu livro acenando que sim com a cabeça.
teria mil e um padrinhos, todos Exmos. Srs. e Exmas. Sras., todos calmos e compreensivos, todos professores de Português e críticos literários.
assim,

vacilo caio ergo-me
no Absurdo,
multiplicando por mil
todas as vozes da Caverna
contra o estupor e a languidez dos espíritos

pois uma voz contém em si o sémen da eternidade.

domingo, outubro 16, 2005

uma avenida em cada dedo a percorrer largas alucinações
do fim da tarde que escorre imenso atrás de um corpo.
é com suavidade que se limpam as coisas mais banais,
bonecas de trapo anoitecidas sem musicalidade
as chávenas de café em torno dos sentimentos de perda.

vou sair e embebedar-me pela primeira vez dos teus livros
deitar a minha boca nos primeiros lábios de espuma.
começa a entristecer a cidade desfigurada junto ao rio,
quando acendo um cigarro nada se move dentro ou fora das aves.
duas luzes azuis comemoram o choque frontal,
sirenes de embalar a morte, a cabeça presa entre o metal e a raiva.

nunca estiveram os meus olhos tão doentes.

sábado, outubro 15, 2005

destes ossos apoiados no pescoço que começam a ceder
e dando o gosto à língua de também ceder
na comunhão do ossos

a imagem que me surge é

precisamente nenhuma

talvez por todo o esqueleto se quebrar tão devagar
que todos nós nos ajudemos a celebrar toda a queda

em
alucinação


Fantasia IV


Fantasia III

sexta-feira, outubro 14, 2005


quarta-feira, outubro 12, 2005



uma chuva que não te deixasse dormir
e era fácil, permanecermos inúteis
de encontro ao sofá, o corpo que verte
é o corpo que afoga os abismos de água.
com tendência à desolação, as mãos crispadas
no encontro das luzes. lá fora é a voz
que se acende nos beirais embaciados,
o lenço breve que te emagreceu o rosto
é a memória mais funda, a língua de éter
na letargia da bala.

terça-feira, outubro 11, 2005

rôo maçãs. rôo maçãs e olho o vapor do chá ou
melhor
da chávena de chá vazia ainda quente e é essa chávena
já vazia de chá que liberta um vapor contra o fundo escurecido da casa, quando anoitece. há livros diversos pela casa mas a maior parte desses mesmos livros está ainda embrulhada no plástico em que vinham quando os comprei. não compro livros para enfeitar as estantes. não compro livros porque me façam companhia. compro livros porque gosto de ler livros mas não tenho paciência para ler livros. assim, rôo maçãs e bebo chá e depois de ter bebido o chá sento-me em frente das estantes e reparo como o vapor da chávena quente contrasta com o fundo da sala escurecida, no fim da tarde, e penso na quantidade de livros que tenho, por ler, e que estão só ali como um porto seguro de qualquer coisa que permanece enquanto a paciência não vem e não pegue nalgum deles, para ler. se algum dia vier uma espécie de vontade, concluo a quantidade de plástico que terei que desembrulhar.
rôo maçãs e olho para o vapor da chávena de chá contra o frio da sala, a sala é escura, entendo, enquanto desembrulho uma maçã para ler, e penso se algum dia irá ser mais fácil ler um livro do que comer uma maçã, mas enquanto não for mais simples, rôo maçãs, porque é o tempo de roer maçãs.

as tardes assim são propícias a comer maçãs enquanto se bebe uma chávena vazia de chá.

segunda-feira, outubro 10, 2005

ao percorreres essa Cidade

sabe que oiço sinto os passos
e que te adivinho os hábitos
ou o modo como seguras o cigarro
enquanto esperas.

fumamos do mesmo modo
- como quem espera

eternamente.

sábado, outubro 08, 2005

abria um livro e o dedo indicador
percorria a tinta impressa na folha
na tentativa de arrastar toda a sua existência atrás.

o crime

seria apenas o de não mais pretender a invisibilidade.

Fantasia II.

Fantasia.

quinta-feira, outubro 06, 2005


a estrela aberta dá ao supermercado um ar desconsolado de solidão. a solidão entra pelas portas do carro e suja-me as mãos de óleo e entre esse óleo suja-me os cabelos de borracha. a estrela aberta não é uma estrela de luz mas sim uma estrela eléctrica que grita prenhe um certo desconsolo.

um certo colo sujo de sangue e de borracha dentro dos estofos dos sofás.

quarta-feira, outubro 05, 2005


o que eu queria escrever é mais longo que os teus dedos,
ainda que o fizesse me sobrariam alguns segredos
os mais breves incêndios das laranjas mordidas no chão
da casa - uma asa breve

segunda-feira, outubro 03, 2005


dizer Abismo. como Vertigem.

mentira pura e a última mentira a ser dita.

como Vertigem Abismo dizer sal sangue sexo. dizer dor miséria. dizer sol. dizer paz.

como Vertigem ou Abismo, cada palavra em contornos de universo.