terça-feira, dezembro 27, 2005

Do Outono

De um dourado enegrecido a tez se veste,
Princípio e reentrância,
E o verde nauseabundo dos ciprestes,
Perfeitos à distância.
Composta esta paisagem de uma febre intermitente,
O artífice destila um riso frágil,
São as tintas derramadas sobre as almas,
De soldados sucumbidos, chamas alvas.
Era um quadro de Degas, um pranto ácido,
As paredes recorrentes,
E as entradas dos teus poros, e o mormaço,
Tão mais alto, tão mais quente.
Desfeita à tua imagem, uma deusa sem pujança,
Essas asas enrugadas caem fácil,
E eis que o céu não te permite convidar-nos,
Ao painel frio que representa o teu escárnio.

este é o primeiro poema meu n'A Caixa. Participar deste blog é honra e prazer. Espero manter o padrão.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

luz negra

tenho todas as respostas.
continuo, no entanto, sem saber onde me dói a coluna ou onde me custa dizer-to
porque tenho tudo numa mão e, ainda assim, parece-me estranho que não o saibas ou não me digas como me dói o corpo ou onde me dói o sangue.
sei tudo de tudo um pouco menos de mim e do que fica de mim na roupa espalhada e nos papéis.
na tua pele espalhada em mim e nos papéis que a escreve.
as palavras são fáceis mais fáceis que perceber o modo como ando ou o tom da minha voz e a maneira como digo

joão

joãojoãojoãojoão este nome enche-me de coisas sem som e coisas sem cheiro e coisas que não são o teu corpo espalhado na minha roupa e nos papéis e no meu sangue onde me dói, onde me dóis no meu sangue e como me custa dizer-te com a minha voz que realmente não conheço.

nunca me vi a não ser num pouco de vidro.

sabes que falo como falo do que falo mesmo que me engasgue ao rir
engasgo-me ao falar
engasgo-me ao amar
engasgo-me ao pensar
e de mim sei tão pouco como o pouco que apenas vejo de mim, às vezes num espelho às vezes em ti ou na roupa ou nas horas que passam e na madrugada que cresce e morre e queria dizer-te deste meu modo surdo e lento e absurdo

dizer-te qualquer coisa como o sol.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Marfim e o sonho absoluto dos caçadores furtivos

recolho os olhos, assim, tal qual tos apresento, e fecho a televisão no mesmo canal de sempre
e adormecemos com o som do meio da noite,
esse som lacustre de umbigos e de incertezas e a meio da noite
a televisão acende-se nos olhos e sonhamos savanas
e o teu corpo está frio junto ao meu,
ambos palavras perdidas junto aos candeeiros e aos pégasos
de louça à entrada de casa, assim, de mau gosto e de baixo
tom, temos tão mau gosto para decoração e tudo à nossa volta
arde, deixa arder, assim, como sempre,
e os olhos acendem a televisão a meio da noite e perguntam
coisas como caracóis.

sábado, dezembro 10, 2005

lake in resorts

e se me roubas mais um dia
se a mim me basta
uma caneta bic
preta-uma-caneta
no bafo das horas

uma folha
morta-a-folha-de-ontem
no jornal de amanhã
limpo às 6 horas
no céu granítico da tua boca.

vamos.

incendiar as ruas.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Cromeleque

olho pelo corpo alheio sem encontrar um sítio
em mim
onde o guardar e então repouso
as mãos e os pés em frente
à televisão e lá fora chove
cá dentro não, etc.
esse tipo de analogias
mas faz frio e o corpo alheio
deve senti-lo
tanto quanto eu.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

(dos amigos. para os amigos)

- Outro dia vi-te.
- Eu também…


(silêncio)

- E… como estás?
- Diz-me tu.

(ambos descem os olhos; respiram fundo… e tossem gravemente)

- Estás doente?
- E tu?
- E não somos todos?
- Queres falar?
- Até falava se o nó não apertasse tanto.
- Entendo.

(os olhos encontram-se novamente e sorriem)

- Obrigada por me ouvires.
- Mas tu não falaste…
- Tu sabes.
- Sei.

(despedem-se com um par de beijos e aos ouvidos trocam algumas palavras)

- Sente o céu a quebrar.
-“O mundo é apenas uma bola sem sentido suspensa no vazio.”

(cada um segue o macadame negro da calçada enquanto vão julgando guardar o maior segredo de todos e que nunca fez questão de se esconder dos olhos de ninguém. o mundo.)

quarta-feira, dezembro 07, 2005


(clicai nas imagens para que as vejais em seu tamanho real...)
(cliquem nas imagens - sim, todas as do blog - para as ver em tamanho real e tirar algum partido de certas coisinhas estupidamente pormenorizadas que a versão thumbnail não deixa ver. E sejam felizes. Muito!)

"better than yesterday and nothing like today..."

terça-feira, dezembro 06, 2005


j-05§

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Corporate Living #1

Que horas são? Cedo, o autocarro é uma coisa podre de metais e plásticos e borrachas e chia nas curvas, ao longe, comigo na praça, em frente do prédio alto e velho, os miúdos acenam-me com os dedos e dirigem-me alguns impropérios, a mim e ao meu fato e à minha mala, alguns olham-me de lado e julgo saber lâminas naqueles bolsos, outros fumam drogas e bebem, mais longe, e o que me chega desses é uma certa conversa despropositada acerca de não sermos nada e de como nossa senhora é tão mas tão bonita e boa na cama. Ajeito a gravata e entro no prédio e dentro do prédio fecho o chapéu de chuva sujo de lixo e de pó e de cuspo e de ranho e fecho a porta a tempo de me livrar de levar com um pacote de leite que presumo estar já podre, enquanto um ou dois miúdos acenam coisas nas mãos e me fazem caretas. Quase todos fazem graffitis nas paredes do prédio, como se a podridão algum dia fizesse com que tudo isto ruísse. Fechámos o acesso directo do prédio à cave porque eles se infiltraram por lá, como ratos. Digamos que são como ratos, a rondar o edifício todos os dias a todas as horas, a roer e a macular as fundações do edifício todos os dias, a todas as horas, querendo o edifício para eles, os dez andares de compartimentos e cubículos para beatas de cigarros e preservativos e alguns intestinos e restos de cérebros aqui e ali.
À entrada pico o cartão e olho para o detector de impressão ocular, um tanto obsoleto, tudo, já, e a máquina responde-me num tom mecânico e impessoal que posso subir, e que hoje posso descansar mais, não há nada de mais para fazer que não seja dobrar papéis e digitar uns textos e umas actas e umas circulares, verificar as acções e pouco mais que isso. O meu escritório é no oitavo andar, virado para a praceta onde os miúdos deitam fora os dias, olhando com raiva para nós e para os nossos fatos brancos e azuis e cremes e pretos e cinzentos e as nossas gravatas cremes e brancas e pretas e azuis e cinzentas e as nossas camisas brancas e cremes e azuis e cinzentas e pretas e os nossos sapatos pretos ou castanhos ou azuis ou cremes ou brancos ou cinzentos mas maioritariamente castanhos e pretos (pretos geralmente polidos e brilhantes). O prédio foi construído com vidros à prova de bala e há vestígios de tiros factuais maioritariamente no segundo e terceiro andares.
Apesar de tudo, o prédio é velho. Chamo o segundo elevador, de entre os dez disponíveis, e demora cerca de dois minutos a chegar, rangendo portas de aço inoxidável contra paredes de aço inoxidável forradas a uma coisa que parece lã. Das doze músicas possíveis, escolho a sétima, uma versão de uma coisa que parece vagamente Autumn Leaves, de Miles Davis e John Coltrane. A viagem demora por volta de quatro minutos. Quatro minutos dá para ouvir a música quase até ao fim. As portas apitam, invariavelmente "chegou ao seu andar. Obrigado, bom dia, até logo!", saio do elevador e atravesso o corredor, cumprimentando uns ou outros, ocasionalmente, pelo menos. Óscar 324 está na cozinha do andar, nu, com um blazer cinzento, um par de meias cinzentas e um avental plástico amarelo, de cozinha, a fritar qualquer coisa, com as nádegas sujas de farinha. Mariana 86 está sentada num banco, ao lado da mesa, nua, com um par de meias de lycra até à coxa, a fumar um cigarro. Ouço-os falarem de mim mas só de repente, e sigo ao longo do corredor. Dez escritórios, até ao meu. Ao longo do corredor, algumas faíscas inesperadas saltam dos aparelhos de segurança e do alarme de incêndios, embora nos garantam que tudo funciona na perfeição. As luzes funcionam perfeitamente, e há janelas q.b., para uma iluminação natural e reconfortante. Tomás 631 está no seu escritório, e entro para o cumprimentar. Em cima da secretária, um estojo aberto, e nas vitrinas ao longo das paredes armas diversas, rigorosamente aprumadas. A janela está aberta e ouço qualquer coisa abafada que se assemelha a gritos ténues. "Hoje está fraco. Só consegui sete, escapou-me agora um...", diz-me 631, apertando-me a mão, e colocando a caçadeira furtiva sobre a mesa. Olho pela janela e avisto quatro dos sete corpos espalhados ao longo da praça, e outro que foge, agarrado a uma perna, o mais rápido possível. Assim que 631 pega na arma novamente e ajeita o cabelo com a mão, ouço um som abafado e o corpo que fugia agarrado a uma perna fica-se por ali, ao pé de um caixote do lixo e de uma sebe. Não há ninguém para os vir buscar. Não sabemos se têm família, ou não. "É mais engraçado quando faço com as pistolas. Eles assustam-se mais, mas sabem que a precisão não é tanta. Com as caçadeiras normais, então, chego a arrancar membros a alguns, em dias mais felizes." As equipas do lixo, quando fecharmos as portas do prédio, tentarão levar os corpos que conseguirem ver, os outros acabarão por ser queimados. Só Tomás 631 chega a conseguir uma média de quinze ou dezasseis, por dia.
No meu escritório não há armas. Apenas uma secretária e um suporte fotográfico de hologramas, onde tenho digitalizações de fotografias de familiares e de locais que me reconfortam, como a luz que entra pelas janelas cuidadosamente colocadas por algum arquitecto sueco. O meu escritório é mais um gabinete que um escritório e não cheira a pinho nem a incenso nem a latex nem a exsodados vaginais nem a sémen nem a merda nem a sangue nem a sabão azul e branco, cheira apenas ao que cheirava quando vim trabalhar para aqui.
Fecho a porta antes de ouvir Óscar 324 a convidar Mariana 86 para mais uma queca na mesa da cozinha, e Tomás 631 grita, provavelmente ajeitando o cabelo, que conseguiu estoirar os miolos em cheio a uma rapariga que estava a andar de skate.

E depois de tudo isto, acendo um cigarro e ouço, agora sim, uma versão original de Take 5, por John Coltrane e Dave Brubeck. E esqueço-me dos miolos espalhados pela praça, dos preservativos na cave, dos graffitis nojentos na base do prédio, dos pacotes de leite podre, da voz do detector de retina e do ranger de portas dos elevadores.

E a máquina traz-me um café mal tirado, enfim, não deixando de ser um café...

domingo, dezembro 04, 2005

Classificados .3

perguntaram-me no átrio da Torre se queria uma revolução e eu ri-me sem vontade e balbuciei em mau Inglês

ai daun-te nâo uat-se gouingue one... ai ri ali daun-te eve a quelu

e depois (agora no dia seguinte) lembrei-me dessa pergunta sorridente
e de um rapaz a pedir dinheiro no Bairro Alto, a prometer que não bebia por princípio e religião, acabando a cantar mornas de Cabo Verde com uma imperial na mão e um maço de Marlboro no bolso;
lembrei-me do quanto detesto Marlboro
e do modo como um amigo me diz que peça a paz mundial e uma bica ou a harmonia entre os homens e um pastel de nata às senhoras da Esplanada que o tratam por Sr. Anjo e me tiram cafés curtos sem que eu os peça;
lembrei-me do café que parece uma tasca que parece um bar onde costumo estar à noite sem saber porquê
e do dono enorme, com cicatrizes na cara, furioso por não ter ido ao Coliseu ver Kusturika e que me pede que lhe traga cd's do Goran Bregovic, preferindo manter despesas incómodas a despedir pessoal
e todo este absurdo é confuso e é delicioso
e a cada dia me parece estar mais longe disto tudo por tudo ser tão confuso e absurdo e incrível e eu me achar alheio a um Segredo Comum que mantém estes sítios de pé


como uma raiz espantosa até ao centro do mundo.

quinta-feira, dezembro 01, 2005


Fantasia VI

Fantasia V